Cacique To'ê Pankararu
Em 1994, completavam-se 186 anos da “Declaração
Guerra Justa”, deflagrada pela Carta Régia de 1808, por D. João VI. A 12 de
junho de 1984, cinco famílias Pankararu e Pataxó, depois de longa trajetória de
migração de Pernambuco e Bahia para Minas Gerais, decidiram iniciar o projeto
de instalação de uma aldeia no Vale do Jequitinhonha. Cantos, danças, pinturas
tradicionais e história de resistência Pankararu e Pataxó se entrecruzam com a
história indígena da região do Vale do Jequitinhonha, por muito tempo relegada ao esquecimento.
O Povo Pataxó pertence ao tronco lingüístico e Cultural
Macro-gê, da família Maxakali,
falantes da língua Patxohã, que
está em processo de recuperação. A maior concentração de suas aldeias está no
extremo sul da Bahia e sua maior referência é a aldeia mãe de Barra Velha. Em
seus relatos orais, os indígenas Pataxó fazem constantes menções à memória dos
acontecimentos que provocaram a dispersão das famílias na década de 1950,
referindo-se ao: “Massacre de 51”; “Fogo de 51”; “Guerra de 51”. Num enorme
conflito causado por questões territoriais com policiais da região, muitas
aldeias se desagregaram e as famílias se dispersaram fugindo da perseguição
desencadeada na localidade. Posteriormente, o território do Monte Pascoal
passou a ser administrado pelo IEF (Instituto Estadual de Florestas), portanto,
os indígenas perderam sua
autonomia na gestão do território ancestral, iniciando uma luta ainda não
finalizada pela retomada do seu espaço original. Criou-se a área do Parque do
Desenvolvimento e acentuou-se a
implantação da monocultura de eucaliptos no sul da Bahia, cujas conseqüências
também recaem, ainda hoje, sobre a população indígena. Todos estes fatores
desencadearam enorme luta pelo território que se prolonga até os dias atuais.
Inúmeras famílias do clã dos Braz da Conceição migraram para Minas Gerais e se
instalaram, por articulação com a FUNAI, na fazenda Guarani, localizada na área
rural do município de Carmésia.[1]
Destarte, os
indígenas iniciaram a luta pela regularização deste novo território, com o
objetivo de transformá-lo em um território Pataxó. Com esta conquista, a
população na região aumentou, pois mais famílias migraram da Bahia. Outrossim, surgiram
inúmeras dificuldades na convivência, concepção territorial e opções
religiosas, em virtude da influência dos não-índios agregados por casamento às
famílias migrantes. Recentemente, um incêndio se alastrou em uma fazenda
vizinha ao território indígena destruindo parte da área de florestas, fragilizando as nascentes. Todos estes fatores somados a superpopulação e a
interferência externa desencadearam um movimento de busca de novos territórios,
inicialmente projetado pelo clã dos Braz. Destes movimentos migratórios
surgiram :-um território em Itapecerica, sul de Minas, e um em Açucena, Vale do
Rio Doce; assim como uma aldeia situada em Guanhães, que não pertencia a
linhagem dos Braz, mas dos Ferreira.
O Povo Pankararu é originário de Pernambuco e sua referência
maior é a Aldeia Mãe de Brejo dos Padres. Assim como os Pataxó, pertenciam
também ao tronco lingüístico e cultural Macro-gê e mantiveram uma cultura forte
com cantos, danças, vestimentas, artesanato, pinturas corporais e
religiosidade. A sua população perfazia a aproximadamente 7.000 pessoas nesta
região. A seca, a inundação de suas terras pela construção de hidrelétricas e a
diminuição das áreas de plantio, aliadas a busca de melhores condições de vida,
levaram muitas famílias a migrar para São Paulo, onde se concentraram na favela
“Real Parque”. Os problemas surgidos com a construção da hidrelétrica de
Itaparica no rio São Francisco desencadearam um enorme conflito entre indígenas
e posseiros, com duração de mais de 20 anos ,acentuando a dispersão de muitas
famílias em busca de melhores condições de vida.
Na migração iniciada por “Sêo Eugênio Pankararu e de D.
Benvina Pankararu” ,o grupo familiar passa por várias aldeias e convivendo com
vários povos, tais como os Xerente, Krahô, Karajá, dentre outros. O percurso de
migração da família durou aproximadamente 30 anos. Em Minas Gerais, os
indígenas foram encaminhados pela FUNAI para a Fazenda Guarani onde foram
acolhidos pelos Pataxó. Os jovens
Pankararu se casaram com jovens
Pataxó. Por volta do ano de 1992, essa comunidade já reivindicava a
necessidade de ter seu próprio território. Desta forma, através da Diocese de
Araçuaí assinaram um comodato e receberam 60 hectares de terra no Município de
Coronel Murta onde fundaram a Aldeia Apukaré. Neste intercurso, onze anos
depois desta concessão diocesana, um novo grupo de famílias Pankararú ligados também ao clã dos Braz,
residentes na fazenda Guarani, fundaram a Aldeia CVJ no município de Araçuaí.[2]
A história indígena do Jequitinhonha ,portanto, tem como
marco divisório o antes e o depois desta iniciativa dos Pankararu e Pataxó.
Todavia, no Vale, persistiam apenas fragmentos da memória dos acontecimentos no
imaginário das pessoas das áreas urbana e rural: “– Minha avó foi pega no mato”;-Minha avó foi laçada e amansada, pois era
muito brava”;”-Acharam as crianças no mato sem os pais e pegaram para
criar”-“Meu avô não era índio, mas ele pegou uma índia que ficou para traz da
manada de bugres, amansou ela, ensinou a comer sal, a vestir, e casou com ela pois
era muito bonita; “Minha bisavó era
índia, teve uma criança com o filho do fazendeiro. Era meu avô. Daí nasci eu.
Mas eu não sou índio. Eles eram.”. Esta memória fragmentada e trágica foi o
que ficou com o silêncio imposto ao longo dos tempos, segundo o qual ser
indígena era ser “traiçoeiro”, “vingativo”, “cachaceiro”, “gente perigosa”.
No período da guerra de 1808,chamada de Guerra dos Quartéis,
o baixo Jequitinhonha e o Vale do Rio Doce foram então guarnecidos de quartéis
militares cujo principal objetivo era o combate aos indígenas e a proteção dos
colonos que ocupariam seus territórios e onde se instalariam os projetos
governamentais. Este violento processo histórico, no qual se aliaram a
catequese, a escravidão e a mestiçagem, não transcorreu de forma pacífica, pois
os povos indígenas impuseram a sua a resistência.[3]
Poucos povos nativos sobreviveram a esses sangrentos embates. O indígena passou
por uma profunda transfiguração. De guerreiros altivos, donos de seus
territórios, passaram a ser considerados inimigos do Estado e a serem
combatidos com uma guerra aberta, que visava a exploração de sua mão de obra.
Nas gerações posteriores, já mestiços, se tornaram a imensa massa de posseiros,
agregados, pescadores, artesãos, moradores das periferias das nascentes
povoações e arraiais formando a grande massa dos trabalhadores sem terra do
país.
Na década de 1990 quando “chegaram os índios” no Vale do
Jequitinhonha, para a população que não distinguia a variedade de povos
indígenas que habita o nosso país, eles eram apenas “os índios!”, os
mesmos e altivos e bravos guerreiros que povoaram a região nos tempos anteriores. Os Pankararu e
Pataxó que chegavam dividiram a
população. Um grande número de pessoas, quer por suas convicções religiosas, ou
ainda, por identificação, por ser descendente e fazer parte desta população espoliada e atuante nos
movimentos sociais, reconhecia como portadores direitos. Do outro lado
permaneceram os habitantes que perpetuavam a discriminação. Permaneciam porém o espanto e a perplexidade
com a proximidade das próprias raízes, a identificação com a cor, com o jeito
de ser e o medo velado de se aproximar.
A presença dos indígenas tem atualmente uma marca positiva
na região, embora muitos ainda interpretem sua cultura como algo exótico, ou,
como idealização do indígena na “figura mítica dos anos 1500”. Neste crescente
processo de aproximação das duas realidades tem sido fundamental o papel dos
intercâmbios com escolas, órgãos públicos, etnias diversas, assim como a
participação dos indígenas em eventos dentro e fora do Vale do Jequitinhonha.
Nos eventos os indígenas divulgam a sua cultura, o seu conhecimento de
artesanato, músicas, danças, culinária, roupas típicas, língua e bebidas, tal
como o cauim (fermentado de milho ou mandioca).
A Aldeia Cinta Vermelha Jundiba vem se destacando por sua
iniciativa em construir uma forma de “Viver Bem, de Bem Conviver” numa região
na qual, segundo as previsões das pessoas e de órgãos públicos, não poderia se
efetivar. De fato, a imagem que se tinha do Jequitinhonha, mencionada acima, o
desconhecimento da luta indígena na região, fez com que até outros indígenas
repetissem os discursos discriminatórios oficiais. A FUNAI (Administração
Regional de Governador Valadares) negou às famílias o direito de possuírem o
seu próprio território e era visível o desconforto entre o órgão e os
indígenas, porque, esta fora uma articulação autônoma deles com a Igreja
(Diocese de Araçuaí) e depois entrando num programa governamental. Inicialmente renovaram-se as desconfianças
e divergências seculares entre Igreja e Estado, que aos poucos, foram sendo
vencidas pela persistência e busca de autonomia dos indígenas em relação a um e
outro, na construção de seu caminho próprio.[4]
O indeferimento do órgão público em relação à questão
territorial fortalece a proposta de autonomia encetada pela aldeia CVJ no ano
de 1994. As famílias viajaram pelo Vale do Mucuri identificando áreas possíveis
para um futuro território. O STR, ONGs, Pastorais, INCRA, CMDRS, ITER
participaram desta mobilização para encontrar um local para a aldeia. Esta
articulação proporcionou o conhecimento dos indígenas das possibilidades de
adquirir terra para aldeia, com o programa do Governo Federal, designado por
Crédito Fundiário. Os índios desejavam constituir um território por seu próprio
esforço, mesmo infringindo em um ato inconstitucional, pois, este seria um
direito originário assegurado na Constituição Brasileira, e, portanto, de
responsabilidade exclusiva do órgão federal. Todavia, esses projetos representavam
mais um passo em direção à sonhada autonomia. Cumpre ressaltar que não excluiam a FUNAI como órgão
governamental responsável pela implementação das Políticas do Governo em
relação aos povos Indígenas, mas se projetou ações com os objetivos de definir
seus próprios destinos, retomando tradições sem uma interferência externa. Com
marcas de rebeldia e consciência, os indígenas constituíram a Associação
Indígena Pankararu-Pataxó, promovendo o deslanchar do processo de consolidação
deste novo território Indígena no Vale do Jequitinhonha.
Finalizado o processo de aquisição da terra, através do
Crédito Fundiário, várias iniciativas se sucederam sejam de forma independente
ou em parcerias:
Construção das casas
provisórias; Atendimento da Funasa através
do PSI-Polo de Saúde Indígena; Cuidar do saneamento na aldeia
(fossas); Controle de epidemia de
esquistossomose em função das atividades da hidrelétrica de Irapé; Abastecimento de água pelo
caminhão pipa; Compra de motor para levar água
do rio Jequitinhonha até as casas, conseguir material para fazer a rede até as
casas; Luta por uma escola na aldeia
(Neste quesito se inclui luta da comunidade pela
aquisição do material e a construção de uma sala de aula provisória); Publicação de cartilha sobre a
experiência dos dois povos reafirmando os princípios da aldeia; Início do Projeto de
Permacultura; Formação de dois professores na UFMG (Curso de
Formação Intercultural para professores indígenas); Ensino da língua patxohã e da permacultura na escola; Início do projeto de Saúde –
Okha Kahab – Cura e harmonia; Prêmio Culturas Indígenas – do
Ministério da cultura e construção da Casa de Saúde; Viagem de intercâmbio com
outros povos indígenas ao Canadá e parceria para início do projeto de
tanques para criação de peixes e
de caixas d’água para coleta de água de chuva; Início da luta pela construção
das casas com arquitetura própria, definida pelos indígenas, seguindo os mesmos
princípios do “viver bem”.
A partir destes momentos vivenciados em grupo, uma série de iniciativas se consolidaram,
como a orientação quanto a formação dos jovens depois do percurso na aldeia, a
participação na vida da aldeia, a integração da comunidade na escola
construindo juntos e acompanhando o seu projeto político pedagógico.
Fonte: SOARES, Geralda. Olhando o Passado e Construindo o Bem Viver na aldeia Cinta Vermelha-Jundiba. UFOP, 2012.
[1] Município de Minas Gerais situado no Vale do Aço-Alto Rio Doce.
[2] Município de Minas Gerais situado no médio Jequitinhonha
[3] Para informação:
MATTOS,IZABEL MISSÁGIA-“Civilização e revolta-A catequese missionária na província de Minas
Gerais.”SOARES,GERALDA –“Na trilha guerreira dos Borun”2010-Editora do Colégio
IIzabela Hendrix; PARAÌSO,Maria Hilda Barqueiro,-O tempo da dor e do trabalho-
1988,tese de doutorado-USP.
[4] Pela legislação vigente no Estado e pelo que está estabelecido na
Constituição Federal de 1988, cabe a
Funai viabilização do processo de demarcação e identificação dos
territórios indígenas. Neste caso, na ausência do órgão responsável, os
próprios indígenas adquiriram a terra
através da compra efetuada através do Programa Governamental do Crédito
Fundíário e nela se fixaram .Este
ato foi questionado por muitos,
pois se afirmava que era um ato inconstitucional, que enfraqueceria o movimento
indígena e a luta pela terra
no país.
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