Nossa aldeia





O Projeto de Vida da aldeia CVJ pode parecer insignificante e não representativo, quando  se toma, de fato, como base comparativa, o pressuposto do número de famílias que a compõem: 08 famílias; cerca 30 pessoas e o embate desafiador que se processa no dia á dia. 
A aldeia CVJ está localizada no município de Araçuaí – MG, norte do estado. Não se trata de uma “iniciativa modelo”, cujos resultados a nível geral possam ser visualizados, quantificados e demonstrados como consequência de uma dada intervenção em uma realidade. Trata-se de um embate com disputas constantes para construção da aldeia no que se refere a sua infra-estrutura, a conquista de direitos; mas, também de um processo  de auto-educação para a construção de uma mentalidade coletiva. A iniciativa de um grupo de famílias decididas a viver comunitariamente, pode lograr êxito ou não suportar o impacto do desafio, caindo nas malhas das pretensões do Estado e da sociedade, que geralmente desarticulam o processo de autonomia propostos pelos povos indígenas. Neste sentido, os indígenas e os que possuem projetos políticos destoantes dos ideais do Estado liberal oferecem  aos gestores pistas para a construção de novas relações sociais construídas a partir da prática quotidiana, da administração de seus destinos e seu futuro.
 A comunidade foi construída a partir da diversidade: são dois povos com trajetórias históricas culturais e políticas diferenciadas. Seus Pataxó e Pankararú buscam construir o presente e iluminar o futuro retomando conhecimentos e práticas ancestrais, somando a inúmeras iniciativas que também se situam neste processo do chamado pós-neoliberalismo. O avanço sobre as últimas florestas e territórios existentes, a destruição da biodiversidade, as constantes ameaças à vida do planeta, configuram o cenário para que os povos se interroguem sobre os sistemas políticos e econômicos vigentes, fazendo-os refletir  como  poderão  configurar novos paradigmas de relações com a Natureza.
Um outro aspecto relevante na aldeia CVJ é o fato dos seus membros não se enclausurarem no passado, pois é impossível o retorno à vida originária ou a fuga das redes sociais. É constante  a necessidade de aliar os conhecimentos dos antigos às novas descobertas, às novas práticas que lhes parecem necessárias a uma vida saudável, sustentável e possível numa região de clima semiárido, recriando assim um outro processo educativo. Embora não seja possível vislumbrar o futuro, a aldeia encara com seriedade a formação dos jovens e crianças, que aos poucos vão delineando o perfil da CVJ. Neste sentido, a CVJ inova em relação as suas práticas e iniciativas de relações com o seu território e às políticas referenciadas aos indígenas, e em relação à construção das relações intra-comunidade. Se considerarmos a política indigenista no Brasil, nos deparamos com entraves colossais que dependem de forças políticas desfavoráveis aos povos indígenas, como é o caso do Estatuto dos Povos Indígenas, a ser votado há mais de 20 anos; e, atualmente o embate em Brasília, com a PEC 215, a votação do novo Código Florestal.[1]
Se nos detivermos sobre a realidade indígena em Minas Gerais, não chegaremos a ir muito longe. Em Minas são três povos que se auto identificaram como tais, um na década de 1990, os Caxixó no Alto rio São Francisco; dois núcleos a partir da migração dos Pankararú para o Jequitinhonha, Aranã, Coronel Murta, Araçuaí e Mocuriñ, Vale do Mucuri; Pankararú, Xukurú, Tuxá e Pataxó (povos migrantes); e os Maxakali , Krenak e Xacribá naturais da unidade federativa. A ação solidária de órgãos e entidades da sociedade civil para com estes povos, tem início no período da ditadura militar (Fundação do CIMI,GREQUI,CEDEFES) e se estende até nossos dias. O Estado começa a ter uma ação mais expressiva em 1910  com a  criação do SPI- Serviço de Proteção ao Índio e em 1972 com a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). [2]
As entidades da sociedade civil têm sempre no horizonte a luta pelos direitos  a eles assegurados, principalmente o Direito Originário, o direito a um território, demarcado e protegido pelo Estado, assim como o direito à educação e saúde diferenciadas. Na maioria das vezes, apesar de toda uma fundamentação em relação a se configurar como uma prática libertadora, e tendo objetivos claros em relação a sua ação, os projetos e iniciativas chegam sempre a um denominador comum: resolvem questões cruciais e emergenciais, mas não provocam um enraizamento nas comunidades que as levem a assumí-las como conquistas próprias. Continuam a ser ações solidárias, saldando dívidas históricas com estes povos – ações estas legítimas, corretas e necessárias –  mas que vista por  este ângulo, continuam a ser,muitas vezes, as ações do “outro”, da entidade ou órgão, portanto, beneficiando a aldeia ou o “povo fragilizado”. Neste caso, identifica-se de um lado, a precariedade da vida imposta pelos vários processos de colonização anteriores  a esta geração e sua consequente resistência, (velada ou não), que formaram as consciências das pessoas e que muitas vezes se manifestam  hoje em críticas, oposição, desconfiança, isolamento, silêncio ou aparente concordância.
Outros tantos povos permanecem também com sua identidade, mas assumem a postura do “eterno necessitado”, sempre necessitando do apoio solidário,  dos que querem que se salde a dívida histórica, cuidando da sua saúde, alimentação, saneamento, moradia, educação etc. Esses, ficam satisfeitos até que surjam outras necessidades, sem que este procedimento desencadeie um processo de florescimento da consciência cidadã. Uma outra parte dos indígenas, que configura um menor número, assume as lutas coletivas, conscientes do embate entre este modelo de sociedade que lhes é imposto como perspectiva para a viabilização do mínimo que a “Carta magna” do país estabelece. 
Assumem o risco, conscientes ou não, de se enredarem nas malhas do sistema e serem corroídos por dentro. A conquista  da solução dos problemas causados pela estrutura, impostos de fora para dentro desde a colonização, não os imunizará das doenças do sistema. Talvez sejam estes os mais expostos a antropofagia do Estado e da Sociedade. Como propõe o sistema capitalista, todos os índígenas vão sendo empurrados para dentro da engrenagem, empurrados por vezes, devagar, aliciados para irem em direção ao consumismo, à roda viva dos compromissos sempre renovados e cada vez mais exigentes. No horizonte de muitos não indígenas, (e quiçá do Estado e de algumas entidades) tem-se em mente, que, resolvidos os entraves, os indígenas assimilarão o processo, darão continuidade ao mesmo e viverão melhor, deixando de se constituir como problemas e preocupação. Não há ainda, ou se há, não é expressiva, uma compreensão profunda sobre o que os mobiliza neste retorno ao passado para buscar na memória as pistas para continuarem sua rota milenar.[3]
Predomina (em grande parte\)a ideia de  uma dívida  a ser paga, de um mal realizado pelos brancos a ser sanado, agora, novamente, pelos brancos. È o estudioso (ou o solidário_) que conclama á restituição da voz do índio, é ele que luta pelos injustiçados, é dele que parte o generoso ato de aproximação. Mais uma vez o índio deve responder, ser objeto de uma ação....!”
“O índio permanece como uma vítima a ser socorrida, como um ser indefezo”...”Encontramo-nos aqui num terreno escorregadio, pois se alguém é visto sob o signo da fragilidade, permanece como mera vítima a ser socorrida, como um ser indefeso”
Cabe aqui uma indagação para uma reflexão posterior: “Se em outros momentos este indígena foi muito mais que uma vítima, se foi detentor de capacidades, saberes especiais, criador de uma vida que excedia o mero âmbito da resistência, tão vigorosos a ponto de se constituírem como obstáculo á fúria conquistadora da sociedade oitocentista”...por que hoje, nesta  condição de  contemporâneos da sociedade capitalista, Estado e Sociedade não se relacionarem com eles a partir desta premissas?15ª.
Naturalmente, no contexto global atual, persiste uma ameaça velada no planeta. Ameaça, não só para os indígenas, porque já se sentem ameaçados há muito tempo. Nenhuma aldeia se sente completamente tranquila em relação a seu futuro. Possivelmente a busca do passado se firme na convicção de que se ele permitiu a vida hoje, abrirá caminhos que permitirão a vida futura. A sabedoria, os conhecimentos ancestrais trarão segurança e  indicarão pistas para o Bem Viver hoje e no futuro.
Conviver com o Projeto de Vida que se materializa no dia a dia das aldeias, é a oportunidade para exercermos nossa capacidade de ficar em silêncio, nossa compulsão para resolver o problema do outro e ficarmos satisfeitos, e, a partir disso identificar e partilhar descobertas, caminhos e conexões com outras iniciativas que também acontecem entre os vários povos. Esta conexão poderá fazer com que todos se sintam parte desta história local, regional, ameríndia, base para a formação de lideranças críticas e capazes de oferecer alternativas com marca indígena na busca desta  sonhada transformação a nível planetário. 
SOARES, Geralda. Olhando o Passado e Construindo o Bem Viver na aldeia Cinta Vermelha-Jundiba. UFOP: 2012.


[1] 14-Código Florestal conjunto de leis que regulamentam o uso sustentável do meio ambiente  e  atualmente completamente adulterado pela bancadas ruralista e evangélica em Brasília, num imenso retrocesso  para o país. A PEC 215-Proposta de emenda á Constituição retira das mãos do Poder Executivo e passa para  a Câmara e Senado a decisão final em relação a demarcação dos territórios indígenas. Ambos expõem o meio ambiente a as populações tradicionais aos desmandos das monoculturas, mineração entre outros.
[2] SPI-Serviço de Proteção ao Indio-criado em 1910,a partir da atuação do Marechal Rondon, extinto por irregularidades .Em seu lugar  cria-se a Fundação Nacional do Indio, durante a Ditadura Militar,   responsável pela implementação da Politica Indigenista do Estado referenciada  aos Povos Indígenas.
CIMI-Conselho Indigenista Missionário. Òrgão anexo á CNBB responsável pela atuação em defeza dos Povos indígenas.
GREQUI-Grupo de estudos sobre a questão indígena-Ong existente na década de 80 e atuante na luta pela demarcação do território Krenak-Vale do Rio Doce.
CEDEFES-Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva-ong com sede em Belo Horizonte. Atua com a documentação da história indígena de Minas. 


[3] Os Povos indígenas são representante  autênticos de civilizações milenares que hoje  permanecem  no planeta .São detentores de conhecimentos, de praticas, de vivências e concepções de mundo, dos seres humanos e da natureza  que ainda são pouco valorizados pela cultura ocidental, que vê neles  empecilhos ao desenvolvimento. Longe se está de ainda da sociedade   entender a sabedoria   e de lhe dar o devido valor nesta busca de  sobrevivência. De torna-la  base para a caminhada da humanidade,neste  ainda único e possível planeta onde o futuro ainda pode de ser pensado.
15ª HORTA,Regina Duarte,Históras de guerra:os índios botocudos e a sociedade oiticentista,Departamento de História-FAFICH-UFMG.

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